terça-feira, 6 de abril de 2010

Faz tão bem.

"Em relação a Marie, não há muito a dizer, e tenho pena de admitir que nunca nos amámos. Tivemos muito carinho um pelo outro, é certo, e terei muitas saudades das horas em que ela chegava a casa, cansada do trabalho, e se sentava ao meu colo, afagando-me o cabelo, enquanto eu ainda escrevia estas páginas no seu computador. Mas gente como eu não é capaz do amor, porque permanece quebrada por dentro, e cada osso do nosso corpo tem a memória de um tempo em que as coisas vãs como o desejo, a união e o futuro têm consistência de uma nuvem no céu que, a pouco e pouco, se dissolve no azul. Quando muito, posso dizer que fizemos companhia um ao outro durante os longos dias de São Francisco. E,ainda que exista uma réstia de esperança de que o nosso coração deixe de ansiar e esteja curado das feridas que lhe foram infligidas, existe uma altura em que, ao abrir uma janela ou sentado numa cadeira, de olhos fechados, sabemos que nada iremos deixar na nossa esteira senão uma vã tentativa.
Decidi partir no dia dos meus trinta anos. Tomei a decisão há algum tempo -e deixei que a tristeza que com ela veio mergulhasse devagar sob a superfície das coisas. Esse dia é hoje. Maria está a dormir, mas eu não farei qualquer som que a consiga acordar - tem um sono pesado e bonito, como o de uma princesa enfeitiçada. Deixar-lhe-ei o manuscrito em cima da secretária, esperando que ela um dia lhe pegue e tome conta dele. Se alguma vez sair para o mundo, então será feita justiça a Daniel; senão, a terra continuará a girar sobre a sua órbita, indiferente aos seus habitantes que não possuem sentido ou destino.
Daqui a nada, já estarei a caminhar por Valencia Stret acima, sempre para cima, em direcção ao mar. Levarei comigo um pequeno saco com uma muda de roupa, e é tudo o que necessito. À distância, já consigo vê-la: enorme e redonda, a grande baleia branca que sulca as águas do Pacífico, o dorso visível à superfície como um grande continente, de um lado ao outro sem memória, sem qualquer registo dos seus dias gloriosos. Que serão vividos, até ao final dos tempos, num rasto infinito de espuma." "Hotel Memória" de João Tordo

(Um final de um livro que nos faz suspirar, enriquece-nos).

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